Maria Rezadeira e Pedro Braga
Hoje, tenho o prazer de compartilhar com vocês um conto fascinante escrito por Humberto de Campos, um dos mais renomados escritores brasileiros. Nascido em Miritiba MA, passando sua infância em Parnaíba, Humberto de Campos deixou um legado literário que ecoa até os dias de hoje, enriquecendo nossa cultura e nossa compreensão da vida e das pessoas.
O conto que vamos explorar, cujo título: FIGURAS PARNAIBANAS: MARIA REZADEIRA, transporta-nos para os cenários pitorescos e para as figuras marcantes da cidade de Parnaíba. Por meio de sua escrita envolvente e rica em detalhes, Humberto de Campos nos convida a mergulhar nas emoções, nos dilemas e nas experiências dos personagens, revelando-nos aspectos profundos da alma humana.
Preparem-se para uma jornada literária emocionante, repleta de suspense, reflexões e momentos de pura magia. Vamos nos deixar envolver pela narrativa cativante de Humberto de Campos e descobrir os segredos que ele guarda em suas páginas.
Sem mais delongas, vamos adentrar neste universo literário único e desvendar os mistérios que nos esperam.
FIGURAS PARNAIBANAS: MARIA REZADEIRA
Conto de Humberto de Campos
LIMITANDO, pelos fundos, com o quintal de “tia” Pelonha, estendia-se o da Maria Padre, ou, mais vulgarmente, da “tia” Maria Rezadeira. Esse era, porém, um quintal cheio, em que as ateiras se emaranhavam, e em que os mamoeiros precisavam esticar-se, para apanhar um pouco de sol. Galhos de laranjeira e cajueiro pulavam de vez em quando a velha cerca de troncos de carnaúba, para vir tomar fôlego na rua.
O Quintal de Maria Rezadeira: Um Mundo à Parte
E a pequena casa de telha, quase secular, essa mesma parecia empurrada pelas árvores, e de tal forma que os batentes de tijolos da porta iam acabar fora, na via pública. Era dessa porta estreita, e de uma folha só, escurecida pelo tempo, que saía todas as manhãs, madrugada ainda, “tia” Maria.
A Casa e a Rotina de “Tia” Maria Rezadeira
Era uma pretinha miúda, carapinha branca, sempre muito limpa e cuidada na sua saia preta e no seu casaquinho de morim. Na ponta dos pés, arrastando-as no seu passinho apressado, as chinelinhas de couro. No pescoço, os rosários negros, de grandes contas, que pareciam justificar aquela inclinação do seu corpo, quase infantil, para diante. E, nas mãos, ainda, um terço, que, para não perder tempo, ia sempre debulhando mesmo pela rua, nas suas numerosas viagens quotidianas entre a sua casa e as duas igrejas da cidade, a matriz e a do Rosário.
A Devoção e a Rotina Religiosa de Maria Rezadeira
Esta última era, todavia, por mais modesta e solitária, e por ser a do culto tradicional da raça negra no Brasil, a da sua predileção. A profissão de “tia” Maria Rezadeira, como seu nome está indicando, consistia em rezar. De manhã à noite, não cuidava de outra coisa. Todo mundo fazia promessa de orações: quem as pagava, porém, era ela. Rezava terços, rosários, ladainhas, prometidos pelos outros. E não cobrava nada por isso. Não fazia preço. Cada um dava o que entendia, ou não dava nada. Quando ninguém fazia contas diretas com o céu, para que ela as pagasse, fazia-as ela mesma.
Pedro Braga: Mestre-de-Obras e Líder Musical
E desde cedo lá se ia – cheque-cheque-cheque –, com a sua chinelinha arrastando, muito ligeirinha, rumo do Rosário ou da matriz, espanar os altares, mudar as toalhas, guardar ou tirar dos pesados gavetões da sacristia os paramentos do Senhor Padre, auxiliando o sacristão nesses pequenos serviços da casa de Deus, e fazendo, a cada passo, uma genuflexão diante de cada santo. Não obstante essa piedade toda, e a solicitude com que rezava por todo o mundo, “tia” Maria Rezadeira foi golpeada, um dia, fundamente, no coração.
A Banda de Pedro Braga: Um Elemento Fundamental
O único mestre-de-obras de Parnaíba, com honras de construtor, era o mulato Pedro Braga, que reunia a essa qualidade a de diretor e proprietário da única banda de música que a cidade possuía. Pedro Braga edificava os prédios, tocava clarineta, compunha dobrados, ensaiava os seus homens, conduzindo a sua filarmônica a batizados, casamentos, funerais, bailes e manifestações políticas.
Os Desafios da Construção: Pedro Braga e Suas Obras
Pela manhã, porém, os músicos mudavam a roupa, e iam trabalhar em construções, cujas plantas eram levantadas pelo maestro. Por isso mesmo, casa que ele construía tinha de cair pelo menos três vezes. Antes do terceiro desmoronamento, não era considerada segura.
Manuelzinho: Entre a Construção e a Música
Um dia, meu tio Emídio Veras mandou reconstruir o prédio em que funcionava a sua casa comercial da Rua Grande, em frente ao Porto Salgado. As paredes haviam de sabado apenas duas vezes quando lhe puseram a cumeeira, e iniciaram a cobertura. “Tia” Maria Rezadeira tinha um filho, Manuelzinho, que era carpinteiro, e tocava pistão na banda de Pedro Braga. Trabalhava ele nas obras, quando começou a chover. Quando se construía um prédio ideado por Pedro Braga e principiava a chuviscar, a praxe era retirarem-se todos os operários, e ficarem de longe, esperando o estrondo. Manuelzinho, dessa vez, entendeu que não devia interromper o trabalho. De repente, um ruído cavo e rouco anunciou o desastre esperado. Correram todos a ver de perto. Não ficara, de pé, uma coluna ou uma parede. Apenas um monte de tijolos, barro, caibros e telhas quebradas. E, sob os escombros, Manuelzinho com as duas pernas partidas.
A Fé Inabalável de “Tia” Maria Rezadeira
Não obstante isso, “tia” Maria Rezadeira não perdeu a confiança em Deus, nem deixou de rezar. Pelo contrário, passou a rezar mais ainda. E a correr para a igreja em hora ainda mais matutina, curvadinha para diante, a saia preta amarrada na cintura, o casaquinho de morim muito limpo, a carapinha muito branca, os rosários ao pescoço, o terço entre os dedos magros, muito ligeira no seu passo miúdo, a chinelinha de couro na ponta do pé – cheque-cheque-cheque…
Fonte: Humbeto de Campos. MEMÓRIAS INACABADAS Obra póstuma.